
Leia o texto de apresentação do meu trabalho doutoral diante da banca composta pelos Professores Virgínia Fontes (Universidade Federal Fluminense); Pedro Prista (CRIA/ISCTE – Universidade de Lisboa); José Manuel Sobral (Orientador, ICS – Universidade de Lisboa) e pelo Doutor Nuno Domingos (ICS – Universidade de Lisboa).
A defesa ocorreu online, no dia 22 de Julho de 2022, às 14h (hora de Portugal). Fui aprovado com distinção e louvor e com indicação à publicação da tese.
Inicialmente, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a CAPES, órgão do Ministério da Educação do Brasil, financiador desta pesquisa, através do programa de Doutorado Pleno no Exterior, e ao Instituto de Ciências Sociais, espaço que me acolheu para o Mestrado, em 2006 e, novamente em 2013, para este Doutoramento. Neste sentido, envio abraços de agradecimento ao Coordenador do Doutoramento em Antropologia, Professor Doutor João Vasconcelos, e à Dra. Maria Goretti Mathias, da Secretaria de Pós-Graduação, sempre atenta e firme no suporte institucional ao trabalho de pesquisa.
Sem dúvida, o meu percurso não seria possível sem o apoio e a generosidade do meu orientador, Professor Doutor José Manuel Sobral, a quem reitero a minha admiração e afeto. Aproveito para, de pronto, agradecer aos componentes desta banca de avaliação, a Professora Doutora, Virgínia Fontes, ao Professor Doutor Pedro Miguel Prista Monteiro, e ao Doutor Nuno Domingos. Estendo os meus agradecimentos aos amigos e colegas que porventura estejam a acompanhar estas minhas provas de doutoramento. E, claro, o meu sincero agradecimento aos amigos e amigas de Évora, que me confiaram histórias e impressões, sem as quais esta tese não existiria.
A minha tese, ora apresentada, tem como eixo principal a análise dos temas mais prementes, surgidos durante o período de campanha para as eleições legislativas portuguesas, em 2015. O terreno em que a pesquisa ocorreu foi o concelho de Évora, capital do Alentejo. Inicialmente, era suposto que as características pessoais dos candidatos distritais e dos dirigentes partidários, um dos quais assumiria o governo do país, constituiriam pontos centrais da análise. No período de formulação do projeto, interessava-me confrontar a impressão de impessoalidade do sistema eleitoral português à provável ocorrência de ajustes personalistas locais, baseados em lógicas clientelistas.
Contudo, a chegada ao campo, ainda em 2014, trouxe consigo caminhos imprevistos. À medida em que me inseria no cotidiano da cidade, o tema econômico era repetidamente trazido à baila, nas conversas informais com intervenientes, tanto os ocasionais como aqueles e aquelas que permaneceram a dar suporte à pesquisa. A economia era tratada, pelos eborenses com quem falava, por meio de duas abordagens: a primeira correspondia à repetição e análise das informações trazidas pelos meios de comunicação social.
A segunda abordagem vinha por meio de uma descrição da depauperização da vida na cidade, expressa pelas descrições das perdas individuais e das dificuldades de suplantá-las. Tais descrições eram contrastadas à memória pessoal do período anterior a Abril de 1974, no caso dos mais velhos, ou à memória passada aos mais jovens pelos seus pais e avós. Fez-se necessário, desde o início, portanto, compreender que a economia e a memória seriam os eixos pelos quais eu sustentaria a minha etnografia. Para isto, eu precisaria criar laços de confiança com os intervenientes, a fim de compreender como a superação da penúria econômica e a rememoração permeavam o fazer político dos eleitores, por um lado, e dos partidos e demais organizações políticas, por outro.
A estratégia de inserção no campo baseou-se na criação de rotinas de convivência com grupos díspares, a partir dos quais eu pudesse alargar o meu círculo de conhecidos. A primeira delas foi a frequência quinzenal às Reuniões Públicas da Câmara Municipal de Évora, pelas quais entrei em contacto com o alcaide, Carlos Pinto de Sá, com os vereadores e com os cidadãos e cidadãs que delas participavam, ocasionalmente. Depois, inseri-me no grupo Os Resistentes, a partir do qual criei laços de amizade com homens e mulheres eleitores do Partido Socialista.
Finalmente, ofereci um curso na Universidade Sênior de Évora, que me permitiu estabelecer uma relação de intimidade com homens e mulheres entre os 60 e os 80 anos. Com eles pude ter acesso a histórias de vida capazes de demonstrar as razões para distintas preferências eleitorais. Pude também colectar diferentes abordagens sobre o regime fascista, a Revolução de Abril e seus desdobramentos, a europeização e o tempo presente, com forte impacto das políticas de austeridade.
Além destas atividades, consegui descobrir afinidades pessoais e manter laços com cidadãos e cidadãs, com os quais circulei por espaços de convívio e entrei em contacto com lideranças e militantes partidários, em especial do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português.
Também no centro do trabalho de campo, estava a frequência de eventos de campanha, em especial jantares, almoços e encontros setoriais, que traziam a oportunidade de conversar diretamente com eleitores ou simpatizantes de cada partido ou coligação. Estive em eventos de todas as fações e pude perceber as diferenças performáticas dos mais variados atores. As notas de campo reproduzem, especialmente, as impressões e as conversas estabelecidas nestas ocasiões.
Os limites para o meu trabalho tornaram-se flagrantes, desde a primeira hora. Usualmente, as etnografias compreendem comunidades pequenas, bem mais acessíveis ao olhar do antropólogo. Eu próprio, durante o mestrado, escrevi sobre um município de 10 mil habitantes, no Brasil, onde eu imiscuí-me facilmente na vida cotidiana das pessoas e das instituições. Évora, no entanto, não me permitiu este nível de inserção. Portanto, tanto a estratégia de pesquisa etnográfica como a escrita da tese ficaram circunscritas às limitações do meu próprio trânsito pela cidade, bem como pela pouca intimidade estabelecida com a maioria dos intervenientes, durante os dois anos e meios de trabalho de campo.
Do ponto de vista da escrita da tese, esta limitação reflete-se no modo como o texto vai apresentando o terreno e os temas da pesquisa. A partir da descrição do concelho de Évora, tendo em vista dados macroeconómicos, o texto mergulha aos poucos no campo. As transposições entre as escalas, como no caso da feira de São João a desenhar à frente dos meus olhos o contexto eborense, trazem a sensação de descobrimento. De uma forma muito significativa, a Feira serve, no texto, como uma plataforma, através da qual os tópicos centrais da pesquisa se demonstram. Assim como a Feira, outros eventos são tratados neste sentido, enquanto as personagens surgem e ressurgem sucessivamente, ajudando-me a costurar a narrativa e a demonstrar as conexões entre os temas.
É de interesse ressaltar que, ao longo de todo o período de pesquisa, os temas não se alteraram. As preocupações com as medidas de austeridade e os debates em torno da Revolução de Abril foram sempre os mais relevantes. Isto ajudou-me a estabelecer uma hierarquia dos tópicos e, desta forma, o ponto inicialmente pensado, qual seja, o efeito das características pessoais sobre as orientações políticas, mostrou-se um elemento subjacente ao debate econômico. Tornou-se mais relevante para a pesquisa ressaltar quais as características o contexto neoliberal exigia dos atores políticos.
Isto, porque a influência do neoliberalismo foi logo percebida para muito além do domínio económico. Esta ideologia estava inscrita no ordenamento jurídico, nas intenções das políticas públicas locais, na performance de Os Resistentes preocupados em se identificaram como empreendedores. O léxico neoliberal compunha os discursos sobre a eficiência individual e estatal, sobre a competitividade nacional e sobre a impessoalidade. Todavia, como demonstrado na tese, a ação neoliberal mais acentua do que diminui a necessidade de instrumentalizar as amizades, muito embora o cenário não tenha trazido à tona um clientelismo calcado na enorme desigualdade de atributos e de capitais.
Este aspeto de horizontalidade, inclusive, ajuda a demonstrar como a instalação do Estado de bem-estar, em especial após a inserção de Portugal na União Europeia, reconfigurou o terreno de maneira a misturar diversos estratos sociais em espaços de convívio comum. Mais uma vez, a observação dirigida a um evento ou situação do cotidiano ajudava a perceber fenómenos mais abrangentes e a refletir sobre categorias caras à análise das sociedades contemporâneas.
Refiro-me, principalmente, ao problema da classe social. O que o meu estudo demonstra é que fronteiras simbólicas se interpuseram aos fatores econômicos, para a delimitação de cada estrato. A predominância da auto-designação pessoal como classe-média demonstra como, para homens e mulheres bem-instruídos, ainda que profundamente empobrecidos ou mesmo sem trabalho, a perceção do status de classe levava em conta os seus capitais simbólicos, enquanto o sucesso económico mostrava-se mais como ‘resultado’ final da ação empreendedora resiliente e planeada.
Também os partidos principais, o PSD e o PS, bem como o CDS-PP, pareciam circunscritos a limites muito estreitos para o desenho das suas propostas. A orientação neoliberal vigente na EU, somada à ingerência da Troika, criavam tais constrangimentos. Acima de tudo, elas expressavam toda uma noção de realidade, a qual, em maior ou menor intensidade, exercia influência sobre as mentalidades. Assim, o estudo em tela mostra que os embates em torno da gestão económica, na Europa, a partir de finais do século 19, ajudaram a criar novas premissas em torno das quais as relações de exploração do trabalho passaram a ser entendidas e tratadas pelos agentes públicos. As soluções imaginadas para os problemas sociais tinham que ir ao encontro das normativas resultantes destes embates, limitando a ação dos governos nacionais e, por conseguinte, dos locais, como o eborense.
A campanha eleitoral estudada foi, para o PS, uma oportunidade para ressaltar o potencial de influência dos seus dirigentes sobre as complexas negociações com a Troika, enquanto, aos seus candidatos distritais, nomeadamente dos socialistas, tornava-se imprescindível demonstrar força pessoal capaz de garantir melhorias para Évora e o Alentejo.
No caso do PCP, a contestação do modelo europeu permeava os discursos. Este partido, pelos seus dirigentes, militantes e apoiantes, chamou-me a atenção para a importância da memória coletiva para a compreensão do terreno. Confirmava-se uma hipótese segundo a qual o alentejano era um eleitor preferencial da esquerda, em função da memória dos duros tempos anteriores a Abril.
Porém, o ímpeto revolucionário do PC levou-me além, na medida em que os esforços de rememoração da Revolução tornaram-se constantes durante o mês de Abril, a indicar que este tema era caro para a afirmação da identidade deste partido. Nos comícios e demais eventos de campanha, já em Setembro, a rememoração de Abril mostrou-se ainda mais relevante, na medida em que oferecia aos comunistas uma chance de contraporem ao modelo neoliberal o modelo de gestão das Unidades Coletivas de Produção, baseadas no que frequentemente era designado, no campo, como coletivismo.
De facto, entre os comunistas, os eventos de campanha assumiam contornos de rituais e indicavam o interesse deste grupo de fortalecer uma visão do passado que os permitisse desenhar o seu campo ideológico e manter a ligação com o seu eleitorado. Porém, esta estrutura discursiva havia perdido influência sobre a generalidade dos eleitores, no período da pesquisa, fato notável, a seguir, pelos resultados eleitorais. No entanto, a elaboração de narrativas sobre o passado continuava essencial para a sedimentação do Alentejo como espaço de contestação política.
Em Évora, mais do que glorificar os feitos do Período Revolucionário em Curso, a rememoração de Abril nas conversas parecia cumprir um efeito ainda mais efetivo do que o que advinha das celebrações em praça pública. Oo respeito às histórias de vida dos pais e avós, ou mesmo a memória contada diretamente pelos mais velhos, eram suficientes para sublinhar os efeitos nocivos das medidas de austeridade. Eram as histórias de vida que, muitas vezes, desencadeavam os maiores e melhores debates acerca das plataformas eleitorais.
Num território em que a memória cumpre um papel unificador, é compreensível que tenha sido observada uma acirrada disputa entre versões do passado. Este fenómeno pode ser considerado um excelente exemplo de como a Antropologia pode voltar a contribuir com a construção de conhecimento sobre a política.
O estudo dos processos eleitorais, antes de representar um lugar-comum na miríade de estudos neste campo, continua a ser uma porta de entrada ampla para a compreensão das relações locais de poder, bem como para explicar como estas relações baseiam-se em conteúdos produzidos coletivamente, nos organismos de agregação de individualidades em torno de interesses de classe – e não só, bem como nas famílias. É nos lares e nos salões de convívio de pares que o passado e o presente são continuamente tratados. A vida é curtida e alinhavada entre familiares ou entre amigos, numa mesa de jantar ou de jogos, num balcão de bar, ou diante da tv, enquanto os analistas e os experts destilam a sua presumida sapiência, tantas vezes desligada das agruras persistentes em sociedades historicamente marcadas pela desigualdade social, como a minha Évora, em 2015.
Muito bom saber da sua defesa de tese e da boa apreciação que obteve. Parabéns, Murilo!
Muito obrigado, Cássio. Há um agradecimento a você, na tese, o qual reitero aqui. Sinto-me realmente feliz. Agora, aguardamos a sua vez! Um abraço.