Geleia Espessa

O passado é uma geleia espessa
onde vidas transitam espectrais.
De sua escura e granulada gosma
poderíamos extrair qualquer certeza?

Ignoradas as fugas na surdina,
os beijos longos entre paredes rotas,
a História, ciência, torna incertos
os relatos de profusas dores e fobias.

Sujeitos que não figuram entre os escolhidos
são autores de máximas façanhas:
dificilmente haverá, porém, arqueologia
que reconheça suas especialidades.

As mãos que escreveram os pergaminhos
não assinaram os evangelhos,
nem com eles fizeram fortuna,
tal qual a mulher de Magdala,
enterrada viva por machistas de batina.

Porque na geleia púrpura estão submersas
as faces dos mártires obliterados,
conservados anônimos entre heróis, deuses
reis, faraós, chás e essênios monges,

o passado floreado que nos alcança
pelas estátuas com músculos torneados,
ou por eloquentes discursos carismáticos,
não corresponde à realidade dos fatos.

Na enorme poça funda e embaçada
perde-se a luz do seu conteúdo:
dedos sem anéis a fiarem revoluções
e concubinas cansadas em casas de campo.

Talvez, quem sabe, na vida após a morte
encontraremos as versões fidedignas
das idas e vindas dos acontecimentos
filhos do destino tecelão de fantasias.

Escrito a 05 de janeiro de 2011.
Fotografia: @RGMurilo. Sr. Manuel, Praça do Giraldo, Évora, 2015.

2 comentários sobre “Geleia Espessa

  1. Por que esperar a morte para conhecer as versões fidedignas dos acontecimentos? Então, pergunto ainda: essas versões serão conhecidas? Depois da morte, quem se interessará por saber divulgar a versão sabida durante a vida?

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